BREVES APONTAMENTOS SOBRE A CARTOGRAFIA
MEDIEVAL
Carmem Marques Rodrigues
História Social da Cultura, UFMG
Todos esses elementos, o
paraíso, o apocalipse, o juízo final, a Jerusalém celestial tornaram-se não
apenas conceitos centrais da escatologia cristã, mas verdadeiros lugares
localizados, identificados ou idealizados pela cartografia medieval.
Até o século XI são raríssimas
as fontes cartográficas medievais, mas os poucos mapas existentes, muitos deles
cópias de originais, carregam ainda uma tradição cartográfica vinculada ao
império romano, característica da representação de rotas, estradas, vias e de
plantas para construções civis e religiosas. A partir do século XI,
principalmente após a conquista de Jerusalém em 1099, surgem diversas fontes
cartográficas relacionadas com a Terra Santa, são os chamados mappaemundi que
tinham o objetivo de instruir os praticantes da fé cristã sobre os eventos
significativos da cristandade. “The purpose of the mappaemundi was
philosophical and didactic: a schematic representation of the Earth that in the
more detailed examples was extended to give a great deal of information about
its inhabitants and their relationship to the deity.” (HARVEY, 1987, p.284)
Dentro desse tipo cartográfico
que se desenvolve os famosos mapas T-O. Inspirados pelas cosmografias dos
autores do início da idade média, como Microbius, Isidoro de Sevilha e Orosius.
Até a invasão muçulmana na Península Ibérica a cosmografia e a cartografia
medievais eram basicamente influenciadas pela Bíblia e por esparsas influencias
grego-romanas, depois da intensificação do contato entre muçulmanos e europeus
e com a tradução de vários textos clássicos para o latim, a influencia de
Ptolomeu e de Aristóteles tornou-se hegemônica. “A cosmografia de Aristóteles e
de Ptolomeu, assim cristianizada, prevaleceu na Idade Média sobre um outro
sistema, sem dúvida mais popular, que descrevia a Terra como um disco chato
cercado pela água e tendo por cima a abobada do céu, morada de Deus e futura
habitação dos eleitos. “(DELUMEAU, 2005: 48).
Os mapas medievais posteriores a
influencia da tradição romana integraram totalmente os preceitos da fé católica
e se tornaram instrumentos de divulgação da fé, por isso são encontrados,
principalmente, como ilustrações de manuscritos sobre peregrinações ou mesmo da
Bíblia, sendo emblemático os mapas que acompanhavam os textos do Apocalipse segundo
são João. Mas enquanto os mapas T-O são característicos por sua representação
cosmológica esquemática, ou seja, ou representavam o mundo divido em três
partes, que seriam os três continentes conhecidos ou incluíam um quarto
continente onde estariam os antípodas, os mappaemundi contém uma riqueza de
detalhes muito mais interessante. Dois mappaemundi são emblemáticos em relação
a riqueza de informações: Ebstorf e Hereford.
O mapa Ebstorf foi encontrado no
norte da Alemanha em 1843, possui grandes dimensões medindo 3.6 x 3.6 metros, e
é uma versão muito elaborada dos mapas T-O. Jerusalém está em uma posição
central e o corpo de cristo está inserido no mapa com a cabeça direcionada para
leste e as mãos para as direções norte e sul, Roma também é representada em
destaque na figura de um leão. O mapa contém uma série de descrições e
definições que contam a história do mundo misturando elementos cristãos e
pagãos. Infelizmente o mapa foi destruído durante o bombardeio a Hanover em
1943, restando apenas cópias fotográficas do mesmo.
Ebstorf Mappaemundi, atribuido a Gervase of Tilbury, cerca de 1234 |
“in medieval religious life, a mappaemundi migth stand as a
representation of the world, for the transitoriness of the earthly life, the
divine wisdom of God, the body of Christ, or even God himself. The Godlike
image is best seen in the ebstorf map, where the head, hands, and feet of
Christ are represented” (WOODWARD, 1987, p.290)
O mapa Hereford é assim chamado
por ter sido encontrado na Catedral de Hereford na Inglaterra, onde permanece
até hoje. É datado de cerca de 1285 sendo o maior e mais antigo mapaemundi
ainda existente, desenhado em uma única folha, mede 158 x 133 centímetros e
representa 420 cidades, 15 eventos bíblicos, 33 animais e plantas, 32 pessoas e
5 cenas da mitologia clássica, uma quantidade de informações que ilustra o
propósito dos mappaemundi medievais. Jerusalém possuiu uma posição central e a
direção leste do mapa aponta para o Jardim do Éden.
Hereford Mappaemundi, cerca 1300, Hereford Cathedral, England. |
“Hereford map, its content was expanded from time to time using
available resources, providing a more or less continuous cartographic tradition
from the Roman Empire to the thirteenth century. The scribe of the Hereford map
seems to have systematically plotted lists of place-names on the map from various
written itineraries, in an attempt to fulfill a secular as well as a spiritual
need. Far from being a mere anthology of mythical lore, the map was thus also a
repository of contemporary geographical information of use for planning
pilgrimages and stimulating the intended traveler.” (WOODWARD, 1987, p.288)
Ainda é objeto de investigação
dos historiadores por quem e como os mapas medievais eram feitos, o que sabemos
é que os primeiros séculos da era medieval foram ainda influenciados pela
agrimensura romana, sendo muito parecidos com a forma de representação da
famosa Tábua de Peutinger que ilustrava os itinerários das vias públicas
romanas.
Com o desenvolvimento da fé
cristã e de seus textos a cartografia foi incorporada como instrumento de fé
recebendo fortes influências técnicas da geometria árabe. A partir da
aproximação dos árabes pela península ibérica e com a divulgação das traduções
de clássicos gregos, no caso da cartografia, principalmente das obras de
Ptolomeu, as técnicas cartográficas passam a seguir o modelo ptolomaico. Após o
século XIV com o crescimento da navegação pelo mediterrâneo os mapas passam a
ter outras intenções, como guias de itinerários e de direções no mar, começam a
ser desenvolvidos os portulanos, que tem uma preocupação direta com a
confiabilidade das informações representadas. A cartografia sofre nova
reviravolta técnica com as grandes navegações portuguesas e espanholas que aos
poucos criaram uma cartografia totalmente desligada das preocupações medievais.
É interessante notar que além
das preocupações religiosas os mapas medievais, principalmente a partir do
século XII, também passam a ser construídos para elucidar disputas territoriais
e administrativas ou mesmo para servir de base para o controle político dos
governos. Os mapas regionais ingleses são ilustrativos das constantes disputas
de terras na região, enquanto os mapas italianos, principalmente de Veneza,
representam um caso a parte, pois possuem uma profunda intenção política, como
instrumentos da República e por sofrerem uma influencia direta das
transformações ocorrida no mundo das artes.
Bibliografia:
HARVEY, P.D.A.
Medieval Maps: An introduction. In: The History of Cartography:
Cartography in prehistoric, ancient, and medieval Europe and the Mediterranean.
v.1. 1987. p.283-285.
WOODWARD, David.
Medieval mappaemundi. In: The History of Cartography: Cartography in
prehistoric, ancient, and medieval Europe and the Mediterranean. v.1. 1987. p.
286-370.
DELUMEAU, Jean. O que sobrou do paraíso. São Paulo: Cia. Das
Letras, 2003.
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